domingo, 27 de dezembro de 2009

Retroversão Azeitonas



Era antevéspera de Natal e chovia copiosamente nas ruas do Porto.

A chuva parou e levantou-se o vendaval, dentro e fora do Passos Manuel.

O que, mais do que surpreender, perturba neste três rapazes que estiveram em cima do palco para o espectáculo intitulado "Ambos os três", é a capacidade de não se deixarem obnubilar pela fama.

Está bem, vão utilizando subrepticiamente todos os mecanismo de marketing existentes no mundo em que nasceram e cresceram.

Mas, neste mundo digital, viraram espantosamente analógicos.

Senão, vejamos:

O Marlon, que podia simplesmente exponenciar uma massa informe de chavalas a endeusá-lo, insiste, no seu ar dread de dandy desconchavado que se esqueceu de botar polainas, e por isso pegou na velha calça com camisa e meia de vidro até ao joelho (que jura ter descoberto recentemente, mas que obviamente faz parte da sua fatitota interior - a de dandy - ), aprendeu a tocar baixo. E tocou. E não tocou mal. E afinal é moço percursionista, e percute bem, ó se percute.

O Miguel, no seu ar dread (sim, eles são todos dreads, cada um na sua frequência:) de levantei-me agora mesmo e tive de vir para aqui porque estava a compor e a dedilhar as minhas guitarras dentro da alma e já nem sei como consigo sair da pele, estou magro e visto as roupas que tenho de vestir, porque eu sou dolorosamente artista e afinal nada me dói) é, todos sabem, um exímio guitarrista que envergonha qualquer virtuoso de letra, mas, acima de tudo, compõe este grupo ímpar, compõe sozinho ou em cima da carne do maior músico dos três, o Salsa.

O Salsa, ó o Salsa, bom o Salsa é sublime nas teclas, ele que não se põe a fazer recitais na Casa da Música, mas podia e sabia, infernal na harmónica (que tem depurado e depurado e depurado, como só os génios), mas não deixa de ser um dread da terra média entre o atinadinho das avenidas e o mozárte de Passos Manuel.

Ambos os três são - e é isso que ressalta da sessão de encerramento de 2009 no Passos Manuel - grandes músicos. E quem tem o atrevimento de se intitular fã deles saiu de lá com esse orgulho.

Deram-nos o o baladeiro galego Roger de Flor de adianto, e, se é certo que a música dos Azeitonas a que ele deu perfume e letra galega é de estouro, perto da excelência, Roger não é Azeitona. É um bom baladeiro, dedilha bem, mas falta-lhe aquele bocadinho assim. O momento em palco com o Marqués da Villa e ambos os três foi muito bom, isso foi, mas só foi.

A Nena, a diva, a voz feminina e doce por excelência, faz falta, sim, mas a intensidade da sua presença em palco poderia ter-nos feito perder a noção do quanto valem, em bruto, estes três rapazes. Queremos Azeitonas eléctricos, sim, mas este era o momento certo para vê-los a nu.

Versões acústicas que se desejam de volta de "Corre", "Salão América", "Café Hollywood" (gostei do novo teledisco no estilo anúncio Super-Bock caseiro, muito caseiro, muito íntimo, e gostei mais ainda da versão acústica) e, grandessíssimos atrevidos, do "Miúda" como nunca a viram, repleto de referências intemporais nas teclas do Salsa.

Eu gostava que o "Anda Comigo Ver os Aviões" com o Zambujo saísse mais coerente em disco. O mal, provavelmente, será meu, que sublimei a música nas gotículas do meu próprio suor tripeiro desde o primeiro segundo, mas sempre disse que esta belíssima balada kitsch era intensamente nortenha. Zambujo tem uma voz belíssima, e talvez valorize a música se cantar à velocidade do Porto, e for capaz de dizer totobola.

A que valorizou, e muito, foi a "Cantigas de Amor", que subiu dez degraus com o toque de Midas do António Zambujo. Uma grande voz.

E numa noite memorável fica também uma surpresa que raramente se tem:

não sei exactamente porquê, mas "Os Azeitonas" têm um público "íntimo" que sabe cantar. Foi quase desarmante ouvir o público cantar, em fundo ou em primeiro plano, com uma estonteante afinação e algumas vezes a duas vozes, como se tivessem ensaiado como coro em classe de conjunto, sem gritar, sem disparatar, sem espingardar.

Levo uns concertos na conta, e nunca tinha visto isto.

Estava lá no arrepiante "Porto Sentido" do "live" do Rui Veloso em 1987, e, se a projecção de um coro de milhares de vozes a sentirem o que cantavam se tornou inesquecível, não me lembro de nada tão subtil como o público desta noite dos AZ's.

Em resumo: se andam distraídos, convinha deixar a lua aqui.

"Os Azeitonas" devem ser vigiados de perto.

Miúdos simples para quem está sempre tudo bem, demasiado bem até (impressiona a descontracção, e eu não lhes posso pedir mais profissionalismo, porque gosto deles assim), perfeitamente desligados até à hora última, mas absolutamente empenhados e concentrados em dar excelência ao que fazem, que não tem igual neste país.

A Retroversão Azeitona de "Ambos os três" é um sinal de coragem e humildade.

Um passo atrás (não em termos de qualidade, mas de registo e sofisticação) para dar dois à frente só pode ser sinal de excelência.

E são amigos do seu amigo, estendem a mão, misturam-se, são pessoas, não estrelas vagas do vácuo.

Caso não saibam, ainda dão toda a música que fazem. Sem pedir nada em troca.

Eu vou ter de dar. Sempre.

Pedro Caius

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